domingo, 29 de julho de 2007

AMOR E ASA

amor é essa mistura de lágrima e corpos
se despedindo longamente
Afonso Henriques Neto

1.
DO OLHO DO FURACÃO
Para Justo D’Ávila

O olho do furacão
o olho da serpente
o ninho
a face
as mãos.
Seu corpo e o meu.
a 1.000km por hora.
tufão a viajar léguas
mares
ares.
Serei a justa medida
da tempestade
da vida
e da tormenta.
Nada te reflete mais
que o espelho dos teus olhos
de água e sal.
Te inundo
e te sei
mareado
extasiado
em espasmos
colossais.

Nova York, 16/02/2001

2.
Tua fúria
produz poemas
inenarráveis
mananciais
de açúcares
teu néctar
teu pistilo
tua flor.

4/06/2001 – 19h21

3.
Havia
num traço
a lembrança
de um mover
de corpo
um rosto
um perfil
teus lábios
fonte de águas
um deslumbramento
teu gozo.

4/06/2001 – 21h50

4.
Espera
que murmuro tua fábula
asa de sonho cismada
coisa de breu escondida
um salto no escuro
tua vida
tua vasta fala
teu sono.
Partes
como o Anunciado.
Te espero
voltar.

7/06/2001 – 20h25

5.
Já não tenho mais essa fala de infinitas cenas mudas
um paraíso novo
um caminho de árvores nas nuvens.
Risca teu rosto o destino.
Empresta teu horizonte comum à vaga
que te lava e purifica.

7/06/2001 – 20h50

6.
Posso ser tua amiga.
Não me afasto de ti nem por um olhar.
Rompi teu silêncio e te ouvi,
o primeiro som, tremor de afagos.
Temo por ti.
Tua beleza é pálida e assombrosa.

7/06/2001 – 20h55

7.
Poema em fogo
chaga.
Tua boca
línguas de lava.
Minha alma
calor e luz.
Teu carinho
– vulcão.

9/06/2001 – 4h36

8.
Mergulhemos em nossos beijos
– pequenas piscinas de prazer –
pequenos charcos,
onde habitamos como peixes.

27/06/2001 – 16h54

9.
OCEANO

Há um oceano que banha as margens,
eqüidistantes braços alongados,
separando-nos quando o mar se ergue,
unindo-nos novamente em calmaria.

Há um oceano que banha igualmente nossos corpos,
nossos sentidos encharcados: águas-vivas iluminam
o ser aquoso que te tornas, cheio de folhas e conchas,
cascalhos e areias que farfalham.

Pedras banhadas de sal, diluem-se lentamente,
seres náuticos e oceânicos, imensidão povoada de brisas,
maresia envolvendo a fronte do meu amado submerso.

5/07/2001 – 17h51

10.
REMOTÍSSIMOS

Quanto mais se afastam as margens
mais largo se torna o oceano
mais extensas as águas por onde velejamos.

Quiséramos cruzá-las como aves
para quem não importam as distâncias
somente o esforço das asas.

Sejam os ventos ou marés sinuosas
os meios de nos aproximarmos,
serão as mãos os instrumentos
e o ouvido o objeto da fala.

Remotos seres de remotas ilhas
jamais se conhecerão.
Somente ventos e mares
farão que nos encontremos inteiros.

Rio, 8/07/2001 – 15h51

11.
MICROSCÓPICOS

Teu olho
mostra em microscópica forma
meu reflexo no espelho em que me vês.

Me olhas como me devoras.

Teus olhos lânguidos, sorriso
de tua boca amada,
rimos
como se tudo fosse
nada.

Rio, 8/07/2001 – 00h17

12.
AH!
A Sylvio Back

Ah essas mãos rosadas
sempre tão prontas

Ah esses beijos-favo
sempre tão úmidos

Ah essa pele extensa
sempre tão fresca

Ah esses gozos raros
sempre tão densos

Ah essa fome-tara
sempre tão imensa

Ah esse corpo-templo
sempre tão puro

20/07/2001 – 9h38

13.
O QUE É RARO

O que é raro num amor é seu encanto,
a beleza que divisamos de passagem,
ao perceber uns olhos sempre longe
e uma atitude circunspetas de respeito.
A postura de entrega e de fascínio,
roubada de algum quadro neoclássico,
a música que ao fundo se percebe:
antes uma tarde do que nada.

Raros são os encontros ainda belos,
como muro escondido pelo musgo,
umas pedras que largadas desenham um arco,
um pressentimento mudo e inexplicável.
São assim os amores quase raros,
os que não se dizem nem se percebem,
porque se ditos, perderão a brisa,
se descobertos, perderão a dança.

Guarda-se o amor assim para sempre,
como nesga de céu ainda claro,
um perfume que há muito evaporou
e o som de uma voz que não mais se ouve.

16/07/2001 – 15h30

14.
TANTO

Amo em ti o imensurável
o peixe espada que me corta o flanco
e sela meu destino de imensidão.
Amo em ti o impossível
os dardos de Apolo lançados
sobre o oráculo.
Amo o silêncio e tua fala.
Amo-te tanto
que não sei mais o que é
não te amar.

3/08/2001 – 2h09

15.
MEDIDA

És fero
movimento de ancas
lábios mãos acentuadas
ombros teu gosto
pele desejo.

Entrecortados versos te cingem.

Te adoro
deus olímpico
mito encarnado.

Mordo-te a espádua
molho teus lábios
com meus beijos.

Te beijo
como um vôo.

7/08/2001 – 2h58

16.
O MESMO

Temos este diálogo de poucas palavras que se realizam sem a fala.
Essa forma habitada antes de anunciada.
Há o peso do silêncio sobre os olhos, a candura de estarmos atentos
e os lábios que se movem por encantamento.

Há toda expectativa de estar um ante o outro, até sem aguardá-lo.
Se as horas não passam mais rápidas,
é porque selamos os segredos antes de sabê-los.

Lavramos o infinito com os sinos de júbilo e esferas,
pois ao atarmos as redes de brumas, tecemos a túnica dos anos.

Ante teu gozo existe meu contentamento,
de colocar-me à espera, embora não venhas.

Saber-te vivo vale o mesmo que te ter.

8/08/2001 – 1h47

17.

a Delayne Brasil

As manhãs são precipícios da alma,
que olham, ensimesmadas,
sobre um mar em horizonte.

27/07/2001

18.
QUIETUDE
A quietude indica o princípio.
Justo D’Ávila

De tua quietude,
colherás o silêncio
necessário para que as árvores
cresçam
e fluam
em direção ao céu.

Vinga tua seiva
e faz-te mais densa
para que rápido esqueças
a dor, a fuga
o descaminho.

Não há culpa
em teu tormento,
nem lutas em tua voz.

Segues, como os dias
avançam,
um após o outro,
até estancarem
as feridas
e descobrir que teu tempo
não te privou de nada.

8/08/2001 – 17h20

19.
TODAS AS MANHÃS

Todas as manhãs são breves e possíveis,
todas claras e benfazejas.
Única verdade fendida,
tecido claro e fino
a vestir-me o rosto
do que vejo.

Toda tarde é longa
e se demora em meu beijo.
Sal e espera.
Laços e quimeras
se estreitam no abraço
que recebemos
e me desdobro
sem mesmo perceber
o que me dás
com a vida que tens.

Sou a que procuras.
Tudo que temos, é.
E o que será, vive em nós,
para teres de mim tudo que te dou.
Navegas livre em meu dorso.
Carrego-te como uma ânfora com cuidado.
Meus passos te levam aonde queres ir.
Todas as águas te levam
e te conduzem
aonde aportas e te lanças
sozinho.

13/04/2001 – 2h36/3h18

20.
LEMBRANÇA

Poesia jorra, verte pelas paredes.
Quero palavras e mais comê-las
porque derramam-se versos
à toda hora.
Onde olho, outro poema salta.

Vem e verte teus versos comigo
onde abrigo teus cantos de amigo
amor em trova que trovador algum negará.

Tens o deserto na alma
na palma das mãos, no reflexo dos olhos.
Tens a voz de mil canhões
ecoando sobre as montanhas.

És o poeta e a hora.
Nada que te habita é mais teu.
Sorves lentamente a lava das memórias
e os vulcões do tempo são mensageiros
do adeus.

Serás um dia a glória
de te saberes vivo como és.
Vestido em tua túnica púrpura
com os olhos voltados para os céus.

Não me aguardes porque me demoro.
Serei a eterna brisa a soprar do mar.
E enquanto velejas
terás nos cabelos a lembrança
de ti e de mim.

17/08/2001 – 20h28

21.
PERDA

De ti,
perco a vida,
como viagem sem volta
em que abraças a ausência
e te bastas.

Perco os olhos no teu rosto
pés, lépidos passos
a saltar na escuridão.

Vestes a noite levando a luz nos bolsos.
Vês teu rosto no espelho
deste mar escuro.

Teu relevo, contorno invisível,
habita meus espaços
onde estivera inteiro,
molhando os lábios em fontes alvas,
banhando-se da seiva de tuas árvores.

De ti, perco a distância,
ao pedir que não mergulhes
no lago plúmbeo.

Fica, mesmo interdito.
Tua vida nunca recomeçará do início.
Faça-a tua.

18/08/2001 – 2h50

22.
COMEÇO

Dentro
as imagens falam
fala Deus de sua loucura
falam os homens consigo mesmos.
Somos só imagens
e palavras,
movimentos desconexos
de ontens irrealizados.
Não esquecemos o som doce
das flautas,
a voz das novas manhãs,
vagando com seus besouros
de carne por entre as folhagens
de luz.
Teu frescor é embriagante.
Nudez de gestos
oblíquos,
olhos que viajam lentamente
sobre a superfície do meu rosto.
Cruzas os pântanos do sorriso
e embebes a alma de sangue
– tua vida apenas começa.
Dilata teu corpo,
vive outra vez.

18/08/2001 – 2h40

23.
EIS

Eis que dois se puseram a caminhar,
um por cima da relva, outro por uma senda
e cada um trazia consigo as febres do vento
e as demoras de ontem.

Caminharam como caminham todas as pessoas
para tentar o encontro e aplacar a sede das horas.
Não se buscavam, mas foi o que tiveram ao final,
depois de muito tempo seguindo na mesma direção.

Um divisou o outro por sobre o rochedo,
já que as rotas seguem para todos os lados
e só houve murmúrio, espanto e sono.
A vida se estreita por onde passamos.

Só não passamos se não tivermos feito a escolha.

21/08/2001 – 15h58

24.
OUTRA VEZ

Deixa escapar por entre os dedos
a vida que segue ávida.
Tenta deter o sonho balaustrado
e belo por entre cúpulas e mistérios.
Abraça-te a resmas de papel e tinta
por onde passam momentos e dias
e nada deixam senão o eco
de outra solidão.

Decifra segredos que não deciframos
inverte as falas e os ouvidos
debruça-te sobre o parapeito
esgueirando a vista para os pés do tempo.
Segue onde terminam os atos
despoja-te de tua carne e cisma
retorna aos versos dados
e circunda a terra com sentido e rima.

Verte os poemas em copos
para bebê-los inteiros.
Esquece-te de ti mesmo e realiza outra vez
teu desejo.

23/08/2001 – 10h56

25.
A ETERNIDADE DAS COISAS

Nada temos de castos.
Os dias dissolutos são impraticáveis.
A lentidão dos movimentos vibra com a mesma força das horas.
Não passam os momentos de que nos lembramos mais.
Não passa a angústia nem o sofrimento.
Livramo-nos sempre de nossa melhor parte
para tornar a buscá-la em outro lugar.
Desistimos daquilo que somos para reaprendê-lo.
Reerguemos à toda hora o monumento à eternidade das coisas
para que fiquem como são ou poderiam ser
ou como queríamos que fossem.

26/08/2001 – 00h18

26.
A ESPERA
(O mundo é feito
de esperas
inconclusas.)
Marco Lucchesi, Bizâncio

És o que foste
a um tempo
e só.
És infinita miragem
do incontido.
A solitária relva
abandono extremo de si
espera ser e nunca é.

Te ouço
na hora clara
em que te levantas e partes
a sede que nunca finda
a lágrima que não seca.
Me devolves a fome que eu não tinha.
A voragem
do turbilhão
em secas planuras.

Nada há a sofrer
que já não tenhamos concebido.
A vida é larga em tuas mãos
e mais se estende
por estares nela.

26/08/2001 – 3h05

27.

Seja então
permanente
a tua sedução
o teu mistérioa tua ausência
e teu estar sendo,
a falta que se completacom palavras,
que se estranha
e se entranha
e se extrai
de si.

25/04/2001 – 2h27

28.
CHAMA

Qual seja a tua chama,
aquece-te nela.
Teu vórtice, olvido,
a vida escavada,
águas passadas e certas,
vaga imensa e última.
Ouve a sofreguidão das mãos,
ríspidos feixes
a colher os molhes,
a chave perdida,
pequenas mãos, frio toque de adeus.
Qual forem tuas palavras, ora.
O ritual temporal
e oblíquo,
corte transversal
e longo.
Tua relíquia carmim
e pura.

26/08/2001 – 3h44

29.
AVIZ

O sonho do menino
rio sonoro
de lentos olhos.
Extremos males
diluídos
na seiva flora
que inunda as margens
e sem volta
segue.

26/08/2001 – 3h32

30.
NARCISO

Te amo cego de vaidade
narcísico
a mirar o rio que corre
largo e destemperado.
Te amo na têmpera
única de uma tela ocre
vida que flui estreita
por veias contidas.

Te amo antes da palavra.
Nó atado e desdito.
Te visto pelo avesso
e transpiro tua pele.
Vãos das mãos
que vertem véus do ocaso.

Amo a simetria de teu canto
a voz cava
olho vaso
eu seminua
e eqüidistante de tua penumbra óssea
a força de tuas mãos
sobre meu peito.

Afunda em mim
e em minhas águas.
Deita as margens além das bordas.
Cose às coisas as minhas falas.
Embebe de vinho o pão antigo.

Serei a seca nuvem
sobre o árido horizonte
a viver de passar
e nunca ser.

30/08/2001 – 21h40/23h55

31.
ME PRECIPITO
A Luís

Me precipito
em teus olhos
vertigens
vagas
viragens.

Me precipito
em tua boca
vesúvios
ventos
voragens.

Me lanço
em teus braços
para que a noite espere
e eu recomece
a viagem.

28/09/2001 – 21h50

32.
LER-ME

Lê meus lábios
e depois
me beija.

Me seduza
com tuas palavras
e me dispa
de minha fala.

Sou nova
enquanto te ouço.
me fazes
sentir bela.

Teu amor
te enleva
por tudo que te dou
por tudo que me dás
por tudo que sou.

És tudo.
E por isso mesmo
sou.

6/10/2001 – 2h54

33.
ATÉ O MAR

A divindade invertida,
começa pelos pés
e sobe pelo corpo.

Ergue-o como uma árvore
os braços estendidos,
alarga-o como um rio
que desce para o mar.

A foz é tua cabeça
acima de tudo e todos,
despejando as águas
que se espraiam por teu corpo.

Tua mente ganha o mar.
e nada é mais divino
que tocar o oceano
com tuas palavras líquidas
que escorrem de tua boca fértil.

O mar se incha
ao lançar teu corpo
sobre ele.

7/10/2001 – 19h44

34.
NATUREZA NOVA

A natureza é feminina
como o monte de Vênus,
suave como seus pêlos,
úmida como maçãs.

A natureza escorre seus rios
por entre seixos e folhagens,
deixando que as cores escoam
com a luz da manhã.

Ah, a natureza bebe seus contornos,
onde as mãos ainda não alcançam
e espera que se deixem habitar por ela,
para que possa acalentar o homem.

10/10/2001 – 10h51

35.
O MAR EM HORIZONTE

Terei o amor
mais puro,
a vida mais larga,
porque começas
em mim
teu sonho
e tua alma.

Onde estás, vives.

Vives em mim
o instante
nunca pedido,
jamais pressentido,
voz e olhar perdidos
num horizonte que nunca
se esgota.

Lanço-me ao largo
e sei que me aguardas.
Não te abandono.

Volto às aras,
aos portos,
aos vales,
às terras ermas
e inexploradas
de tua carne presente
e minha.

Dê-me tuas mãos despidas,
a sustentar o último gesto
incompleto.
Decifras em mim
o que te restou de ti
e recomeça onde acabo.

11/10/2001 – 20h14

36.
A FOME DA ESFINGE
Oh, mesmo se te decifrar, devora-me, esfinge minha.
José Nêumanne

Devorarei
teus olhos,
para que guardem
de mim a imagem
que vês.
Devorarei tua língua,
para que fiquem
as últimas palavras
que dizes.
Devorarei, enfim,
teu corpo
para que tenhas
amado somente
a mim,
depois de me
decifrar.
Rio, 16/10/2001 – 00h57

37.
AVESSO

Nada será mais vasto
que tua forma avessa
santidade oblíqua
e líquida
semente diluída
em casto mar contido.
Esquecerei as vozes
e entrarei num quarto
sem ruído
escuridão imersa
e invertida
respiração suspensa
e clara.
Nada disso será visto.
Impunes,
encerramos a história.

Ponte de Tábuas, 6/10/2001 – 22h00

38.
A VIDA É
A Tanussi Cardoso

A vida é:
coração posto à prova
a cada manhã.
Teus amigos
teu filão de pão
teu café
o jornal posto de lado.
A manhã guarda
todas as sementes
do dia.
Tua conquista de sol
teu lápis a rabiscar o poema.
O que te resta senão
continuar sendo?
Petrópolis, 28/10/2001 – 12h55

39.
SABER

Esta outra mão
será a do gesto
cumprido.
Terá tua beleza
impregnada.
Só restará o feito
por tua vontade.
Esta, a única que sabes,
terá meu consentimento.
Ficarão como são
- nem menores nem maiores
do que antes.
Mas tua ausência selará
o segredo:
o infinito das coisas finitas,
por sabê-las como são.

3/11/2001 – 19h21

40.
A CECÍLIA

Se te beijasse,
seria breve a vida.

Por isso guardo o gesto para depois.

Depois viriam as esperas
todas ritmadas,
centradas em si mesmas
e nós, mudos, por dentro.

Teu motivo é a rosa,
perdida em tanto afã.

Ouve no vento a sibilante fala
e revela no poema
seu talho à mão.

Nenhum verso te preserva:
estás nua envolta em palavras.

Antes que chegue teu dia,
mais uma vez te esquecerão,
só para se lembrarem
aflitos,
de que nunca morres

como não morrem
os motivos da rosa.

6/11/2001 – 4h00

41.
ELA VEIO
A Jiddu Saldanha

Ela veio, mas não
é ela quem chamo.
Seu nome é vário
e cristalino,
mesmo assim
não sei quem veio.
Não sou ela e ela
me habita.
Serei a vã sabedoria
das auroras.
Tenho muito mais dias
que ontens,
pois o futuro
se avassala
e nos avizinha.

7/11/2001 – 21h50

42.
PRIMEIRA HORA

Verás como verter palavras.
Escolherás as horas
e beberás toda vez
a morte
em pequenos goles.

Não, não terás dúvidas.
Mais uma vez estarás só,
tu e tua estatura, como quem
aprende a altura para saltá-la.

O verso de tuas mãos te dói,
o alentado peso de tuas cicatrizes.

És quem soubeste ser.
Procura teu longo espelho.

Nada restará de ti,
então, começa agora
a descartar teu peso.

14/11/2001 – 19h30

43.
REVERSO

Terei teu corpo
– a fina casca de teu tormento –
e terás me consumido até o último frêmito.

Te sorvo as têmporas úmidas
e estreito teus pulsos entre meus dedos
– faço-te sangrar teu desejo escarpado e íngreme.

Impregna-me com tua voz.
Deita-me em teus vazios estreitos,
tua fome cercada de segredos.

Sou tua vida.
Tua fala.
És, ao reverso,
a alma que procuro.

Tenha-me, porque sou breve.

14/11/2001 – 20h00

44.
CENA NUA

Tudo está certo,
mesmo que a bala não atinja
ou resvale em
uma parte de nós
que fere.

Tudo é fartura
até nas agruras.

Para um ter
a mais
outro perde.

Como te tornaste lavra
e cravaste em mim um sonho?

Semeia em mim tua vontade
e recebe de volta
minhas palavras.

Tenho vontade de acalentar-te
como um menino,
nu e meu.

Nenhuma dor te atinge,
ao proteger-te com meus beijos.

Sacio-te primeiro
e sacio-me contigo.

Temos outrora e o hoje
incrustados em mármore
de carrara.

Escrever, escrever, escrever,
havemos de fazer outra coisa?

Quando não escrevemos,
pensamos em escrever
e quando não pensamos,
poderíamos ter escrito.

Escreve sobre mim
com tua mão de mago
e deixa as marcas
de tuas palavras.

Devoro-te lentamente
com a certeza
das bocas.

A vida, não a morte,
é sempre anunciada.

Vivamos
por entre
a vida.

5/04/2001 – 18h11